segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Stony pass

Conheci o Acklei de uma maneira engraçadinha faz quase 6 anos e, desde a primeira vez em que conversamos pessoalmente, eu sabia que nos planos dele estava essa temporada em São Paulo. Quando nosso assunto particular começou a ficar mais sério, logo ele disse que só viria pra cá se eu também viesse. Antes disso acontecer, nos apaixonamos perdidamente, casamos, planejamos. Agora, 5 anos e meio depois, em São Paulo estamos. Prestes a ir embora, de volta à nossa querida Floripa. Quero contar um pouco mais do que foi tudo isso, do que foi viver uma experiência de residência médica que não era minha, mas que acabou sendo muito mais [minha] do que eu imaginei.

Começo dizendo que me sinto como um soldado sujo de lama, voltando do combate, bem pertinho do fim da guerra (é, eu sei... meio dramático, mas é verdade). Em 2011 aconteceram as provas de residência, em 2012 saíram os resultados e com eles nasceram novos sonhos e possibilidades. Expectativa a milhão e medo também. Sou (era?) bem matutinha no que se refere a grandes cidades e eu simplesmente morria de medo de SP. Perdia o sono de tanto ficar pensando em como faria para me virar aqui: "coooooooooomo, meodeos, que vou no mercado sozinha???"; "dirigir??? nemmmm pensar"; "vou passar 2 anos trancada em casa", etc, etc, etc! Quando o Acklei me sugeria pegar o metrô... eu não sabia se ria ou se chorava de desespero. Levei 1 semana pra sair a primeira vez na rua sozinha e foi pra ir ao supermercado (que fica a 300m de casa), com GPS (hehe) e sem maquiagem - esse detalhe é importante, porque nunca vou a lugar algum sem usar pelo menos corretivo e rímel. Fiquei apavorada porque todos os que vieram prestar serviço aqui em casa (nessa uma semana antes da minha estréia na rua sozinha) perguntaram se eu era de fora, porque eu tinha cara de alguém "de fora"e eunãoqueriatercaradealguémdeforasocorro! Então eu achei que sem maquiagem eu pareceria menos de fora. Tola. Contei tudo isso pra vocês poderem perceber que eu já estava sofrendo pelo desconhecido e pelo desconhecimento e pelo medo de estar num lugar de onde só se tinha notícias ruins. Então sair na rua era igual a ser assaltada/morta, na minha cabeça de matuta. Nessa mesma cabeça era como se eu não fosse mais livre. Some a esses fatos o de eu ter saído do meu trabalho de 7 anos e estar em casa o dia todo. Sim, adaptações.

E tivemos que nos adaptar. Às vezes aos trancos e barrancos, se é que me entendem. Decidimos, nós dois, que eu não trabalharia [fora - notem que essa palavra me acompanha] nesse período por Jampa (jungle + sampa). O Acklei não achava bom eu ficar pra cima e pra baixo sozinha nessa cidade e eu também não (hahahah). Consideramos custos de transporte e alimentação fora para dois, a contratação de alguém para cuidar da casa... Olhamos para os objetivos de estarmos aqui (estudarrrrrr e estudarrrrrrr) e meu cavaleiro do zodíaco amor decidiu que bancaria sozinho as despesas. Porque tínhamos nos preparado e porque ele achava que era o certo. Então eu virei uma espécie de desperate housewife. Meu foco era cuidar da casa, mas no início eu não soube dosar. Limpava tudo loucamente, cozinhava todo dia (to-do-di-a) - eu cozinhava muito pouco em Floripa, aliás, aprendi a cozinhar bem aqui. Comecei a gostar da vida em casa, chegando a considerar nem sair mais dela. Isso não seria um problema se aquela pessoa fosse eu mesma, de verdade. Mas não era. Demorei um pouquinho, mas entendi que aquela minha versão era necessária para o momento. Fazia parte da minha adaptação, fazia parte do cuidar ao qual me propus (nos propusemos), era minha nova atividade. Nova e temporária. Mas houve momentos difíceis.

Em contrapartida, Acklei estava entrando num barco de desgaste. Acordando todos os dias às 5 da manhã, sem horário pra chegar em casa (às vezes cedo, às vezes tarde). Fazendo plantões extras pra poder pagar as contas (você choraria se eu contasse quanto é uma bolsa de residência). Tínhamos reservas, mas elas foram chegando ao fim. Então, a solução:  além dos compromissos da residência todos os dias, plantões extras quintas, sábados e domingos. Às vezes nas terças também. E às vezes nas sextas. Teve segundas algumas vezes também. Não mencionei ainda que, por não ter conseguido licença do Estado de SC, meu marido resolveu manter o vínculo do seu concurso público (pensando em coisas muito além, que se eu explicar esse texto não vai acabar nunca), indo a Florianópolis trabalhar a cada 15 dias nos finais de semana. O que eu vi? Um homem muito cansado, acabado. Mau humorado. O sono em pessoa. Desanimado. Também não falei sobre o doutorado, cujo projeto ele iniciou no meio de tudo isso, incentivado pelo chefe do serviço onde fez a residência. Suas palavras quanto a essa decisão foram "Líd, se eu até hoje precisei muito da tua colaboração... não sei nem o que te pedir agora. Mas é muito, muito importante pra mim" (eu sei que aí bem cabe um "nós"). E aí que além de trabalhar muito, ele também estudava muito, todos os dias. Por causa do doutorado e por causa da residência. E houve momentos difíceis.

Decidi várias vezes, então, que iria trabalhar fora, que iria abandonar o combinado. Que eu não poderia mais ficar em casa, que eu tinha que ajudar financeiramente - essa parte é a mais difícil. O ego e o orgulho começam a conversar... Poucas não foram as discussões sobre o assunto, mas a imagem que sempre fiz ao final de cada uma delas é mais ou menos assim: eu em pé, uma porta aberta reluzente diante de mim; seguro uma trouxinha (de orgulho) e olho para trás, onde estão o Acklei, a casa, os gatos. E então desisto. Porque se já era difícil comigo em casa, nem quero imaginar se eu não estivesse. Afinal, eu já tinha aprendido que eu era um pilar e o Acklei outro. Nada nunca vai ser mais importante que minha família.

Então eu tava em casa sempre e o Acklei quase nunca. Sorte a minha que sou muito boa com solidão e aprecio minha própria companhia. Isso, lógico, não quer dizer que não sentia falta do meu marido e dos dias quando nossa vida era... normal. Apenas me conformei; isso tinha data pra acabar (e acabou)! Não posso deixar de falar do esforço quase sobrenatural [dele] em me dedicar atenção nos seus curtos períodos livres, em sacudir a poeira e me levar pra jantar, ou ao cinema, ou dar uma volta por onde eu quisesse. Fosses um herói, babe. Gosto de lembrar que transformamos toda pizza em eventos importantes, todo sanduíche em celebração.

A essa altura eu já tinha perdido o medo de São Paulo, do metrô, das pessoas, de dirigir. Aos poucos fui abandonando o GPS e passei a usar maquiagem sempre. Comecei (e terminei) minha [segunda] pós-graduação, fiz amizades (além dos queridos conhecidos através da residência), fiz novos planos, fiz todos os cursos (na minha área profissional) que nosso planejamento permitiu. Mas as coisas continuavam difíceis... porque elas eram.

Agora estou a 11 dias de voltar para Floripa. Escrevi um texto porque essa cidade onde ainda moro mexeu profundamente no meu eu. Well, sei que não foi ela. Mas se mexe comigo, tenho que pôr pra fora, não é o que sempre disse a vida inteira? Sinto-me bem mais heroína que um big brother do Bial (só pra explicar: não acho nenhum bbbosta herói). Faço parte da mobília da minha casa, sei onde se encontram todos os pequenos papéis. Sei olhar pro meu marido e identificar em cada fio de cabelo branco (hihihi) o tamanho de seus esforços. Sei olhar pra mim mesma com respeito por tudo até aqui. Companheirismo, braço forte e compreensão não faltaram para dissipar os momentos difíceis. A residência [médica] foi mais minha do que poderia imaginar porque ela passou a fazer parte dos meus dias, invadindo minha casa, minha vida e levando meu marido, como uma amante atrevida. E não se tinha o que fazer. Stuck in a moment, you know? Na minha trouxinha agora trago minha casa e meu céu. O orgulho não me atormenta mais.

E suja de lama volto, feliz pelo bom combate.